Título Notícias Humanitas

O mordomo da vez é a geração de energia distribuída

Publicado Por: José Maria

“Se me enganas uma vez, a culpa é tua.
Se me enganas duas vezes, a culpa é minha”
Anaxágoras (filósofo grego)

Um dos clichês dos romances policiais do século XX é que o mordomo é sempre o principal suspeito, ou mesmo culpado pelo crime ou delito cometido no enredo da história. O que não deixa de ser uma saída fácil demais para o mistério engendrado pelo autor.

No caso do setor elétrico, cuja privatização é o enredo principal desta triste história vivida pelo povo brasileiro, tudo começou com os argumentos de que o setor público não tinha os recursos financeiros necessários para investir na expansão, na inovação e modernização , para as exigências do desenvolvimento do país. Igualmente era questionada a capacidade gerencial do poder público, alguns afirmavam que o setor privado é mais eficiente, competitivo, e assim poderia oferecer a tão desejada modicidade tarifária, e excelência nos serviços prestados ao consumidor.  

A implementação do modelo mercantil fazia parte da transição econômica proposta pelo governo de plantão, de um modelo de crescimento impulsionado pelo Estado, para o crescimento impulsionado pelo mercado. O que se verificou, ao longo dos últimos 30 anos, desde a primeira privatização de uma distribuidora no governo do neoliberal FHC, é que os argumentos utilizados para justificar a privatização caíram por terra.

A privatização desestruturou o setor elétrico brasileiro, e não funcionou para os consumidores. Mas para os agentes do mercado, o Brasil tornou-se o paraíso, o país do capitalismo sem risco. A falta de planejamento, os problemas na regulação e fiscalização pelo conflito de interesses gerados, os reajustes acima da inflação baseados em contratos de privatização com cláusulas draconianas, e o precário e comprometido dos serviços prestados aos consumidores, afetou drasticamente a qualidade dos serviços, devido à falta de investimentos e a redução do número de funcionários qualificados, tudo para aumentar os lucros das empresas privadas.

A gota d'água para a desestruturação completa do setor elétrico foi a privatização da Eletrobrás. A partir de então perdemos a gestão dos reservatórios das usinas hidroelétricas para o setor privado, abrimos mão do planejamento e das políticas públicas para o setor.

No contexto pós privatização, surgiram um emaranhado de órgãos públicos e privados, que fragmentaram a lógica do sistema elétrico brasileiro, até então baseado em uma operação colaborativa, cooperativa, flexível, cuja base era a geração hidrelétrica. Que ainda continua contribuindo com pouco mais de 50% na matriz elétrica nacional.

Uma das consequências, a principal deste desarranjo estrutural do setor, foi o aumento estratosférico das tarifas, tornando inacessível para grande parte da população o acesso a este bem essencial à vida. Para resolver os problemas criados com a privatização, nunca mencionada pelos que defendem este “crime de lesa-pátria”, mudanças, reestruturações, reformas, modernização foram realizadas ao longo dos últimos trinta anos sem que os problemas crônicos fossem solucionados. A mais recente “reforma estruturante” foi a proposta contida na Medida Provisória 1304/2025, conhecida como “MP do setor elétrico”, encaminhada pelo Ministério de Minas e Energia para o Congresso Nacional.

Em tempo recorde, bastou menos de 5 minutos para a MP ser aprovada por ambas casas legislativas. Entre tantas medidas pontuais aprovadas, nada estruturantes, e sem alteração direta nas tarifas. O agora Projeto de Lei de Conversão no 10, aguarda a sanção presidencial. Foi aprovado que todas as fontes de energia (renováveis e não renováveis), serão utilizadas para a geração elétrica. Inclusive a nucleoeletricidade, que inviabiliza o discurso que a MP vai baratear a conta de luz. O custo da eletricidade nuclear pode chegar a quatro vezes maior que a energia gerada pelas fontes renováveis. Além de prorrogar até 2040, o prazo para a contratação de usinas termelétricas a carvão mineral, combustível fóssil mais poluente e danoso, para o aquecimento global.

Entrevistado sobre a aprovação da MP, o ministro de Minas e Energia Alexandre Silveira, reconheceu que “os lobbies venceram o interesse público”, sem dúvida se referindo aos diversos lobbies que atuam junto ao setor, como o “lobby das baterias”, do “curtailment” (cortes na geração renovável) que briga pelo ressarcimento financeiro, o da “geração distribuída”, do “carvão”, o “lobby das hidroelétricas” que querem reduzir as exigências ambientais, da “abertura do mercado”, o “lobby do nuclear”, entre outros. Por sua vez o ex-ministro de Minas e Energia, e atual senador Eduardo Braga (PMDB/PA), relator da MP no Senado, ao ser perguntado sobre a aprovação, com mudanças em relação à proposta original do governo, disse que “foi discutido e aprovado o que foi possível, na democracia cada um defende seus interesses, e foi isso que aconteceu”. Declarações que evidenciam a ausência do Estado na definição das regras, normas, procedimentos. Não é mais o governo federal, através do Ministério de Minas e Energia, quem define as políticas do setor elétrico, quem planeja, coordena e implementa, são os interesses privados.

Com relação a geração distribuída com fontes renováveis é inegável os avanços na matriz elétrica brasileira com mais de 5 milhões de sistemas instalados com a micro (até 75 kW) e minigeração (de 75 kW até 5 MW), beneficiando em torno de 20 milhões de brasileiros, todavia uma parcela modesta em relação aos 93 milhões de unidades consumidoras cativas existentes.

A velocidade de introdução das fontes renováveis, principalmente pela geração centralizada, sem dúvida tem colaborado para criar uma instabilidade no setor elétrico. Devemos repensar e reconhecer que a intermitência gera instabilidade na rede elétrica. Várias alternativas existem para amenizar a instabilidade, implicando em inovação e altos investimentos, como por exemplo: reforço da rede de transmissão, armazenamento, uso de compensadores síncronos, sistemas híbridos com integração de mais de uma fonte, além da gestão inteligente da demanda com eficiência elétrica. A questão é quem irá pagar a conta.

Estes empreendimentos de geração centralizada necessitam de grandes áreas, e gera impactos tanto nas pessoas que vivem no entorno das instalações, como na natureza, com o desmatamento da Caatinga. É neste bioma, no Nordeste brasileiro, que está localizado mais de 85%, das centrais eólicas do país, e 60% da capacidade instalada de usinas solares de grande porte.

Não se pode minar as vantagens comparativas das fontes renováveis pela captura do mercado destes empreendimentos, que pelo frenesi de novas oportunidades de negócios agem com irresponsabilidade, leviandade, e em alguns casos, criminosamente.

No momento atual da completa falta de planejamento, de coordenação existente no setor elétrico, a limitação da participação da mini geração solar, das usinas solares e das centrais eólicas na matriz elétrica, seria uma ação a ser discutida para conter a sobre oferta, paralelamente a outras medidas. Em relação ao “curtailment” foi aprovado na MP, o ressarcimento parcial e retroativo para as empresas geradoras, não sendo considerado que o corte das renováveis é um risco inerente ao próprio negócio.

O que se tem verificado historicamente, é que as políticas públicas no Brasil priorizaram a expansão da oferta de energia para atender ao crescimento da demanda, em detrimento de medidas robustas de eficiência energética. O que resulta em um modelo que busca primariamente aumentar a capacidade de geração, o que tem acontecido com o crescimento vertiginoso da geração centralizada com fontes renováveis, e com propostas insanas de expandir o parque nuclear. Tal abordagem leva ao aumento de custos da energia, ao desperdício e aos impactos socioambientais.

Embora a oferta de energia tenha sido historicamente dominante, a mudança de paradigma é uma necessidade diante dos desafios provocados pela crise ecológica. E a transformação ecológica tem chances de acontecer se a sociedade consciente deixar de ser meros espectadores e se tornarem protagonistas.


Heitor Scalambrini Costa

Professor associado aposentado da Universidade Federal de Pernambuco

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