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Confira o discurso do Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Paulo Jackson, durante o encerramento da III Semana Dom Helder Camara de Direitos Humanos

Publicado Por: Dell Souza

Senhoras e senhores,
Inicio estas breves palavras com este poema de Thiago de Melo:

Para os que virão
 

Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.

Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.

Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular - foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se

- muito mais sofridamente -
na primeira e profunda pessoa
do plural.

Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.

É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.

 

Desse poema, colho uma ideia, um sentimento e uma imagem propulsora de esperança:

1) Uma ideia: Eu sou nós

            A têmpera de um homem é forjada em seus antepassados, em suas memórias, em seu povo, em sua história familiar, nas escolhas feitas por outros e filtradas, relidas existencialmente por cada um, nas marcas de fogo e sangue que vão desenhando o craquelet de suas rugas e tecendo os fios prateados dos seus cabelos, marcas em seu corpo, registro indelével de suas opções. A têmpera de um homem é também forjada em suas escolhas, sobretudo para responder ao lado de quem quis estar, que causas quis abraçar e que lutas quis travar nas vicissitudes e veredas da história.

            Dom Helder Camara teve clareza disso. Ele era um nordestino, em tempos sombrios, gritando para o mundo a força do humanismo integral. Carregava em seu peito um amor imenso por Jesus Cristo, especialmente pela Eucaristia. Carregava em seu peito um amor imenso pelo ser humano, sobretudo a carne rasgada de Cristo anônima, invisível, estendida pelas calçadas ou amontoada nos calabouços e masmorras dos que queriam calar a força da aurora que sempre teima em surgir de novo. Nos palácios da França, na ONU ou na pequena sacristia das Fronteiras, ele foi sempre um apaixonado pela vida e por desencadear processos.

            Ele tinha consciência, com o perdão da gramática e da lógica, de que Eu sou Nós. Ele era apenas um homem, “para quem a primeira e desolada pessoa do singular foi deixando,
devagar, sofridamente de ser, para transformar-se, muito mais sofridamente,
na primeira e profunda pessoa do plural”. Tornou-se irmão universal, solidário com toda e qualquer pessoa humana sofredora. Mas, de modo especial, desejoso de que cada um se tornasse nós, se tornasse povo.

2. Um sentimento: não tenho o sol escondido em meu bolso de palavras

            O que quis dizer Thiago de Melo, quando, acanhado, reconheceu não ter o sol escondido em seu bolso de palavras. Compreendo que seja o reconhecimento de sua finitude, de sua incompletude, de sua impotência. Como poeta e artesão da palavra, ele reconhece que estamos sempre timidamente tateando, diante do mar assombroso e bravio dos desrespeitos a direitos básicos e fundamentais. Há muito a ser feito e temos feito pouco.

            Ao longo da história, mas, sobretudo a partir de 10 de dezembro de 1948, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a humanidade tem dado alguns passos e empancada está em tantos outros. Liberdade e dignidade fundamentais; direito à vida da fecundação ao ocaso natural, fraternidade e solidariedade universais; nenhuma discriminação injusta; liberdade e autonomia em relação ao corpo e a sua integridade; nenhuma tortura; reconhecimento e igualdade de todos perante a lei; nenhum arbítrio que lese a liberdade; equidade perante a lei e a justiça; presunção de inocência; estado democrático de direito; liberdade de ir e vir; direito de asilo e nacionalidade; direito a contrair matrimônio e formar uma família; direito à propriedade; à liberdade de consciência, de expressão, de imprensa e de religião; direito à associação; direitos políticos, de voto, de participação em governos democráticos e de acesso aos serviços públicos; direito ao trabalho, a um salário digno e à proteção social; direito ao repouso, ao lazer e ao ócio criativo; direito ao bem-estar próprio e de sua família, o que envolve comida, água, vestuário, instrução, cuidados médicos e moradia, especialmente; direito a produzir arte e ciência; direito a uma ordem social que defenda e assegure esses direitos.

            Só para citar o exemplo mais terrificante: a fome. Dom Helder fez ecoar o seu grito em favor da virada do milênio sem fome. Como conceber que os dezesseis estados com PIB per capita mais baixos do país sejam todos os nove do Nordeste e os sete do Norte? Como ainda compreender que o Leão do Norte, berço de revoluções e ousadia possua mais de 50% de sua população abaixo da linha da pobreza, ganhando cerca de 497 reais por mês por pessoa? Como conceber que possa conviver, no mesmo Recife, o Shopping Rio Mar e a Favela do Bode, o Porto Digital e os grotões de esgoto a céu aberto, o Porto de Suape e o analfabetismo crasso? Como imaginar que Pernambuco ainda tenha o terceiro pior Índice Gini do país, destacando-se como terra das desigualdades? Como entender que quase vinte por cento da população do nosso Estado dependam do Bolsa Família e que o número de dependentes deste programa seja maior do que o número de pessoas com empregos formais com carteira assinada? Como suportar situações desumanas e degradantes como os amontoados humanos em presídios como o Cotel de Abreu e Lima ou os complexos do Curado?

Poderíamos continuar a cantilena mórbida e sinistra. De fato, não temos o sol em nosso bolso de palavras. E ele ainda demora a brilhar plenamente.                         

3. Uma imagem: avançar de mão dada com quem vai no mesmo rumo

            O poeta nos convoca a avançar de mãos dadas com quem vai no mesmo rumo. “Não importa que doa: é tempo de avançar de mão dada com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja de aprender a conjugar o verbo amar”. Obviamente, há nuances do nosso pensamento que destoam do pensamento da OAB, da Associação Brasileira de Imprensa ou mesmo do pensamento de algumas outras Igrejas e Comunidades Cristãs. Dom Helder tinha consciência disso. Há muito a ser feito e muito pode ser feito se, com o perdão da gramática, conjugarmos o “verbo” nós.

            “É tempo sobretudo de deixar de ser apenas a solitária vanguarda de nós mesmos. Se trata de ir ao encontro. Se trata de abrir o rumo. Os que virão, serão povo, e saber serão, lutando.

                                                                                               Muito obrigado!

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