Título Notícias Humanitas

Dom Helder e a abundante atualidade de sua vida

Publicado Por: Karoline Menezes

Texto por Alan Cavalcante, SJ

Neste dia em que celebramos 25 anos da Páscoa de Dom Helder Câmara, muitos são os aspectos de sua vida que podemos explorar, dada a grande abundância de dons que o Dom[1] presenteou à sociedade. Ao refletir sobre a atualidade da vida de Dom Helder, não se pretende elaborar um texto composto por generalidades, mas, ao contrário, escolher um aspecto específico, ou um "indício"[2], como preferimos nomear, para fazer uma memória celebrativa e significativa. Afinal, a memória a que recorremos, independentemente do sujeito em questão, nos coloca em um movimento de confronto, exame e convite a uma união de desejos: o desejo próprio da memória evocada e o desejo que ela suscita nas pessoas do presente. Qual desejo de Dom Helder queremos rememorar celebrativamente? O desejo de que todas as pessoas empobrecidas tenham uma vida digna e, como a vida de Dom Helder, uma vida abundante. Nesse sentido, nosso ponto de partida para este breve texto, será o Concílio Vaticano II (CV II), lugar onde o Dom exerceu um articulado trabalho em favor da dignidade de vida das pessoas empobrecidas.

O CV II foi um cenário rico em diversidade de grupos (não oficiais) e diálogos. Entre os diversos grupos com diferentes ideais orientadores, Dom Helder participou do Grupo dos Pobres, também conhecido como Grupo da Pobreza, que, ao final do Concílio, elaborou o Pacto das Catacumbas. Nesse ambiente e no contexto do Grupo da Pobreza, Dom Helder se destacou como um grande articulador e comunicador das problemáticas do que se denominava o Terceiro Mundo. Assim, em seus movimentos a realidade das pessoas empobrecidas nunca deixou de estar em seu campo de visão; foi essa realidade que o impulsionou a agir.

Durante as sessões do Concílio em Roma, Dom Helder aproveitava seu tempo livre para viajar pela Europa, onde comunicava a precariedade enfrentada pelas pessoas empobrecidas no Terceiro Mundo. Com sua notável capacidade oratória, ele falava a públicos e profissionais diversos. Muitas dessas conferências são relatadas em suas cartas conciliares aos seus colaboradores no Brasil. Da mesma forma, ele aplicou essa habilidade de articulação no contexto interno do CV II, onde foi um dos redatores do Pacto das Catacumbas.

O Pacto das Catacumbas é um documento composto por 13 orientações e convites muito concretos para a vida da Igreja e de todo o povo que dela faz parte. Parte das diretrizes do documento foca na reforma da vida pessoal, com recomendações para um estilo de vida distinto. Outra parte se volta para uma ação conjunta com o objetivo de promover uma vida digna e abundante para as pessoas empobrecidas. Segundo Dom José Maria Pires, conhecido como Dom Zumbi, Dom Helder foi o bispo brasileiro que viveu de forma mais radical o Pacto das Catacumbas, tanto em sua vida pessoal quanto em sua ação concreta na sociedade, a partir da Igreja local em Recife.

Por esse motivo queremos corroborar parte dessa memória abundante do Dom com quatro pontos do texto do Pacto das Catacumbas:

8. Daremos tudo o que for necessário do nosso tempo, reflexão, coração, meios etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários, compartilhando a vida operária e o trabalho (cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27). (BEOZZO, p. 38)

9. Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de “beneficência” em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levem em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes (cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33-34). (BEOZZO, p. 41)

10. Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens e, por aí, ao advento de outra ordem social, nova, digna dos filhos dos homens e dos filhos de Deus (cf. At 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tm 5,16). (BEOZZO, pp. 43-44)

11. Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral – dois terços da humanidade –, comprometemo-nos: • a participar, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres; • a requerer junto ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como fez o Papa Paulo VI, na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.  (BEOZZO, p. 46)

No final do CV II, Dom Helder refletia sobre o Pacto das Catacumbas como uma mensagem que traria de volta ao Brasil, onde seria paraninfo do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Ele afirmou: “Arranjarei um jeito de dizer que a jornalistas a gente homenageia com ‘notícia’. Anuncio, então, que, no dia em que eles se formam, entrego-lhes uma notícia que me parece fruto maduro do Vaticano II”. A proposta concreta do documento, expressa em seus quatro pontos principais, é clara: uma ação profunda e permanente em prol da melhoria das condições de vida das populações empobrecidas.

A dedicação total de Dom Helder - em termos de tempo, reflexão, coração e recursos - para que a fome, a indignidade e a pobreza deixem de existir é evidente em sua vida. Ao mesmo tempo, é inegável que ele viveu plenamente esses quatro pontos em seu cotidiano em Recife e no Brasil 9em diversas instituições). Essa evidência, ou "indício", como mencionamos no início deste texto, é uma memória rica que nos inspira a continuar trilhando o mesmo caminho profético de Dom Helder e de tantos outros que, como ele, se tornaram profundos amantes do Reino, desejosos de que o Amor, que a todos e tudo restitui à vida, seja igualmente abundante.

Verdadeiramente, o Pacto foi um fruto maduro do CV II, tanto para o Dom como para muitas pessoas que receberam o espírito de renovação que ele impulsa até hoje. Os signatários do Pacto de 1965 demonstraram com obras e de verdade que outra Igreja é possível (O Dom demonstrou que outra Igreja é possível, inclusive, hoje). O Pacto das Catacumbas segue atuando como um legado subversivo do CV II. (ARNTZ in PIKAZA; SILVA, 2015, p.77.)

No campo da historiografia, é comum ler que a memória (ou a História) é importante para que os erros do passado não se repitam. No entanto, a memória ganha ainda mais relevância quando a evocamos para buscar repetir os acertos do passado de forma discernida, adaptada e criativa. "Fazer memória" de Dom Helder não se restringe a mencionar seu nome ou relembrar seus feitos, pois sua vida abundante nos convida e desafia a refletir sobre como continuamos nos envolvendo com a realidade de pobreza, violência e indignidade vivida pelas pessoas em nossas cidades e em nosso país.

Hoje, em tempos de discursos violentos e divisores, rememorar uma pessoa que foi nomeada de artesã da paz e que tinha em seu coração a experiência de um Amor radical e enraizado no Evangelho é um sinal de alegria e profecia. Alegria, porque, de algum modo, todos podemos testemunhar essa abundância; e profecia, porque nossa sociedade continua necessitando de pessoas que se identifiquem e atualizem o serviço em favor das populações empobrecidas. Afinal, além de dar pão a quem passa fome, é crucial perguntar-se por que as pessoas passam fome.

Dom Helder, presente!

 

Referencias:

BEOZZO, José Oscar. Pacto das Catacumbas: por uma Igreja servidora e pobre. São Paulo: Paulinas, 2015.

MARTINS, F.A.C. Dom Helder e o Pacto das Catacumbas. Monografia (Graduação em História) – Instituto de Ciências Humanas, Pontifícia universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2020.

PIKAZZA, Xabier & SILVA, José Antunes da (org.). El Pacto de las Catacumbas: La misión de los pobres en la Iglesia. Espanha: Verbo Divino, 2015.

 

Sobre o autor:

Alan Cavalcante é jesuíta, graduado em História pela PUC - Minas Gerais, mestrando em Filosofia e Ciências Sociais no ITESO-Universidade Jesuíta de Guadalajara/MEX e integrante do Instituto Humanitas – UNICAP.

 

[1] Modo como ele próprio se chamava em suas cartas circulares e como se deseja manter nesse texto.

[2] Método histórico chamado paradigma indiciário, onde a partir de uma característica denotada como fundamental se pretende indicar um dado importante.

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